Diário de Liv

sexta-feira, julho 29, 2005

Caminhando e cantando X Sabiá

As circunstâncias dos anos 60 cobravam dos compositores
que fizessem música política

Três meses antes de o AI-5 pôr de fora suas monstruosas garras, Geraldo Vandré subia ao palco do 3.º Festival Internacional da Canção e apresentava Caminhando, canção subtitulada como Para não Dizer que não Falei de Flores. Não falava de flores. Era uma provocação. Falava de “soldados armados” que, nos quartéis, aprendiam a “estranha lição de morrer pela pátria e viver sem razão”. A canção virou hino dos estudantes, cujos movimentos de protesto contra o regime militar recrudesciam desde a morte, por tiros da PM, em março do mesmo ano, do estudante Edson Luís, no Rio de Janeiro.
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Caminhando concorria com Sabiá, de Tom Jobim e Vinícius de Morais. Sabiá era uma canção de exílio, ou uma canção de amor que poderia ser ouvida como canção de exílio. “Não vai ser em vão que fiz tantos planos”, dizia a letra da primeira parceria de Tom e Chico. Nesse enfoque, a oposição entre as duas músicas era só aparente. Ambas, com diferença no grau de elaboração e sofisticação, falavam do País perdido, na esperança de reconquistá-lo.
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Havia o time dos que defendiam Sabiá e o dos que defendiam Caminhando. Esta era música “participante”, a outra, a “alienada”. O contraste (que era contraste de forma, não necessariamente de conteúdo) foi ficando mais intenso, até a decretação do AI-5. A coisa começou com Carlos Lyra, um dos fundadores da bossa nova, que trabalhava com o Centro Popular de Cultura, da União Nacional dos Estudantes (UNE). Lyra deixou de lado o amor, o sorriso e a flor para fazer música de fundo político. A segunda geração da bossa, ou a primeira geração pós-bossa (a de Chico Buaque e Vandré), já surgiu sob a divisão.
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O grande marco música de protesto foi o show Opinião, que estreou no Rio, em dezembro de 1964, com Nara Leão, João do Vale e Zé Kéti. Era um show, digamos, conceitual: mostrava uma moça burguesa, da zona sul carioca, um migrante nordestino – o maranhense João do Vale – e um negro do morro do Rio – o sambista Zé Kéti. Chico Buarque, no início, parecia enquadrar-se como músico de protesto – em Pedro Pedreiro, samba de seu primeiro disco, de 1965. No mesmo ano, Carlos Lyra fazia sucesso com Pau-de-Arara, uma parceria com Vinícius de Morais, cantada por Ari Toledo, sobre um nordestino que, para sobreviver, come gilete em troca de dinheiro na Praia de Copacabana.
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O ano seguinte foi marcado por A Banda, de Chico, e Disparada, de Théo de Barros e Vandré, oposição ainda não muito clara (houve um esforço para enxergar conotação política na marchinha reminiscente de Chico). Mas, para acirrar o contraste, Gilberto Gil começa a brilhar – com o samba de roda Louvação (letra de Torquato Neto) e com o baião estilizado Procissão, ambas tipicamente músicas de protesto.
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O ano anterior ao do AI-5 marcou definitivamente a divisão. Agora havia, de um lado, o tropicalismo, com as guitarras, as roupas coloridas e o aparente distanciamento do que acontecia no País; e havia o efetivo engajamento de Chico Buarque – com Quem Te Viu, Quem Te Vê e Roda Viva. Por isso tudo, era impensável que, no festival de 1968, quando se tornava mais tenso o quadro político, Chico viesse falar de passarinhos.
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Essa polarização, como toda polarização, era simplificadora. Mas refletia um momento de medo e perplexidade. E o que se sentia e temia foi resumido por Paulinho da Viola – um sambista de quem não se esperava tomada de posição –, que venceu um festival no ano seguinte com um samba lento cujo título – e cuja poesia – resumia tudo o que se seguiu: Sinal Fechado.

MAURO DIA
Jornal Folha de São Paulo

§ Quem assistiu a mini-série Anos Rebeldes vai entender o recado deste artigo!!!!!

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